Censura ou construção da igualdade racial?

9 de novembro de 2010

Normatiza do CNE, “censura” e estratégias diversionistas: a questão do negro no livro didático, paradidático e infanto-juvenil
 

Nos últimos dias, fomos “assaltados” mais uma vez pela mídia, que, em parte, vive de escândalos e da descrição de uma realidade sem, às vezes, fazer uma crítica mais rigorosa e sistemática. O assunto do momento é, como gostam de colocar, a “censura” do Livro “Caçadas de Pedrinho”. O referido livro foi apontado pelo parecer do Conselho Nacional de Educação, órgão colegiado ao Ministério da Educação, como uma obra que contém trechos considerados racistas. A partir disso, a discussão tomou âmbito nacional e pude acompanhar alguns fóruns de comunidades no orkut e no próprio fórum do meu curso de especialização, que está discutindo “educação das relações étnicorraciais”. 

O assunto em torno do livro do livro do Monteiro Lobato é interessante, polêmico e pertinente! Como qualquer cidadão, devemos nos posicionar perante a realidade e fazer a nossa escolha. Acredito que é com esses temas (e com essa discussão) que (pelo menos) mobilizamos nossos pensamentos e começamos a nos questionar das nossas próprias escolhas, das nossas próprias opiniões e podemos também adotar um comportamento diante disso.

Por isso, questiono:  Qual a importância de discutir raça/etnia? Qual o papel da educação infantil e do ensino fundamental? Qual a importância das histórias infanto-juvenis? Essas são algumas perguntas que devem permeiar esse debate em torno do livro do Monteiro Lobato. Eu, particularmente, acredito que precisamos nos posicionar diante das teorias, fatos, ideias, conjecturas, etc. Penso que a educação não é neutra, quer queira quer não. Portanto, a educação é política. Nossos atos estão “impregnados” de valores, concepções, etc. Nossa ação é intencional, quer tenhamos consciência disso ou não. A própria escolarização formal caracteriza-se por uma intervenção sistemática, intencional e rigorosa que tem por objetivo, dentre outras coisas, “disciplinar” o sujeito. Conhece para governar é o grande lema! Enfim, precisamos nos posicionar e o não posicionamento é um posicionamento!

Sendo assim, considerei que, quando vamos discutir esse assunto, mobilizamos uma estratégia “diversionista”, nos termos do Junqueira (2009, p. 181, grifos e acréscimos meus), que é um tipo de estratégia que

“[...] aproxima-se da negação interpretativa, mas dela se distingue porque aqui o interlocutor, ao admitir a homofobia [e o racismo], exibe maior preocupação em introduzir novos problemas, apresentar argumentos fantasiosos e discutir aspectos nitidamente escapistas ou pouco relevantes, procurando dar novo rumo à discussão”.

Isso se verifica ao colocar Monteiro Lobato como “um clássico” e desconsiderar a problematização da questão que é no fundo discutir o racismo no livro didático, paradidático e infanto-juvenil, mas também questionar sobre quais livros são apropriados para todas as crianças. Aqui também pode entrar outra estratégia diversionista, qual seja: “qual é a idade adequada para as crianças saberem sobre racismo?”

Temos que lembrar sempre da História. E, nesse sentido, temos que reconhecer que “[...] começa-se a desenvolver uma preocupação com o negro no livro didático e paradidático no Brasil em 1950 [...] (NEGRÃO, 1988 apud SOUSA, 2001, p. 195). Como nos alerta Ribeiro (1996, p. 172 apud SOUSA, 2001, p. 195), a literatura infantil, didática e paradidática

[...] está carregadíssima de exemplos lamentáveis. Para a construção de um autoconceito favorável, é preciso que o ideal de ego não se mostre irrealizável, e fundamental para isso é o resgate da beleza, poder e dignidade das diversas etnias africanas. À criança afro-brasileira falta o modelo de Belo Negro.

Diante disso, o problema, é que nem todos(as) os(as) professores(as) tem “conhecimentos e competências necessárias” (quais são os conhecimentos e competências necessárias? Isso também gera outra discussão!) para trabalhar o racismo em uma literatura infanto-juvenil. Considerando isso, é mais fácil que o racismo seja realmente “introjetado” pelas crianças e a discussão passe sem a devida intervenção com a voz entoada dos contos de fadas. É possível também, por meio dessa literatura, reforçar e legitimar estereótipos e incentivar “apelidos” por parte dessas crianças! A questão é, repito, quais livros são indicados para as crianças lerem? Por que livros sobre sexo não são indicados, mas livros sobre racismo o são?

Eu, particularmente, por um lado, acredito que as histórias de discriminação não devem ser excluídas dos livros, materiais, mídia, etc., mas elas devem ser “o foco” principal da história e não estarem nas entrelinhas, como podemos notar na obra de Monteiro Lobato. Adjetivações, comparações e afirmações, como as que ele usa “nem Tia Nastácia, que tem carne negra (escapou)”, geralmente, são feitas nos finais de frases e discursos e são “aceitas” como “verdadeiras” pelos(as) professores(as) e pelas crianças.

Monteiro Lobato representou uma tendência na literatura infanto-juvenil que já está superada. Outros(as) autores(as) desde 1980, a exemplo Ziraldo, que foi “inovador” para época ao escrever “O menino marrom”, embora usando essa expressão eufemística, estão constituindo uma nova geração da literatura infanto-juvenil no Brasil. Uma literatura da beleza de todas as identidades. Uma literatura que não se limita a ver o(a) negro(a) restrito às atividades domésticas e aos cuidados dos filhos, como a Tia Nastácia. Uma literatura que tem objetivo de construir um novo imaginário social, um processo de construção da identidade menos negativo e menos traumático,

[...] pois as imagens que moram em nossas mentes desde a infância influenciam nossos pensamentos durante a vida e podem contribuir (se não forem estereotipadas, inferiorizadas) para a auto-estima e aceitabilidade das diferenças, visando uma vida adulta feliz. Para isso essas imagens precisam mostrar nossa “cara”, força e cultura a todos. Dessa forma, possivelmente, os gestos e as atitudes dos seres humanos serão mais éticos, justos, menos etnocêntricos, plurais, enfim, democráticos (SOUSA, 2001, p. 1996).
Nesse sentido, considerando o histórico das lutas do(s) movimento(s) negro(s) e a política de construção de currículos que recriminem o racismo e promovam a igualdade racial, considero que é fundamental não utilizar a referida obra na escola, como forma de mostrar que os valores atuais que precisamos incentivar são outros. Se os pais quiserem comprá-la que o façam.

Outra estratégia “diversionista” é situar o parecer do Conselho Nacional de Educação como uma “censura”. Essa é uma estratégia discursiva que está sendo usada a favor da reprodução dos estereótipos, preconceitos e discriminações contra diversos grupos historicamente excluídos. Tentam justificar que a “liberdade de expressão” está sendo “violada”. Que vivemos em uma censura “moderna/velada”. Não vamos cair nesses discursos apelativos que só defendem a posição de privilégio que eles ocupam. Estamos falando de “seleção de conteúdos” que é tarefa realizada diariamente pela escola, pelos(as) professores(as) e pela política educacional. Não estamos falando de “censura”. O livro jamais será censurado. Ele só não será escolhido como parte do Programa Nacional de Bibliotecas Escolares. E os novos escritores(as), onde estão? Por que Lobato é sempre escolhido como referência? Por que ele é “clássico”? Por que não incentivam e financiam a criação de outras obras proporcionando novas visões e lançando novos(as) escritores(as)? São essas perguntas que também devemos fazer!

Até capacitar todos(as) os(as) professores(as) para lidar com o racismo e identificá-lo no livro didático, paradidático ou infanto-juvenil vamos demorar muito. Uma mudança rápida é não deixar essa obra entrar nas escolas. Mas aí dirão: “não tomar contato com obras de cunho racista, não vai acabar o preconceito, o preconceito não vai deixar de existir”. É, por isso, que precisamos também imediatamente propor a inclusão de obras valorativas e também questionadoras do racismo.

No fim, outra questão que está permeando os debates atuais sobre essa “normativa” do Conselho Nacional de Educação é que o documento estabelece a exclusão de obras de cunho racista, sexista e homofóbico, mas não determina a inclusão de conteúdos valorativos sobre a história da cultura africana e afro-brasileira, a história e cultura indígena, história da luta das mulheres e dos(as) homossexuais. Eu tive contato com essa ideia no Encontro Nacional Universitário da Diversidade Sexual, na Unicamp, no começo do mês de outubro de 2010. Só pontuando a questão de gênero e sexualidade, o Felipe F. Moreira, que apresentou o artigo Escola e sociabilidade*: as entrelinhas discursivas nos livros didáticos, demonstrou o quão “técnico” e “naturalizante” ainda é a abordagem sobre sexualidade nos livros de ciência que vão para as escolas em 2011 após passarem por essa análise de especialistas do MEC ou do CNE para o Plano Nacional do Livro Didático. Ou seja, quem são esses/as especialistas que avaliam esses livros?
É claro que tudo vai depender da condução pedagógica e da visão do(a) professor(a)! Histórias de discriminação servem para problematizar uma realidade, desde que tenhamos consciência dessa tarefa educadora! Histórias de superação servem para mostrar que, mesmo diante das adversidades, é possível ser feliz, ter amigos, construir um autoconceito positivo, por exemplo. Histórias de valorização servem para possibilitar um processo positivo de construção identitária em relação a gênero, raça e sexualidade!

Portanto, já saibam: se for discutir literatura infanto-juvenil e Monteiro Lobato, não deixe de comentar as passagens racistas nas entrelinhas dos seus contos. Não podemos deixar de explorar as possibilidades pedagógicas de todas as histórias! E vamos proliferar as histórias de diferenças!

Como diz Negrão (1990, p. 21 apud SOUSA, 2001, p. 212), “não basta retirar do texto os preconceitos e as discriminações o que já é muito bom, mas criar personagens negras, com sentimentos e vivências próprias”.

Para finalizar, 

“Interessa-nos, especialmente, o educador, o professor que escolhe as obras paradidáticas que serão lidas pelos alunos. Se ele não estiver sensibilizado por essa questão, conhecer os conceitos de raça, etnia, preconceito, discriminação, ler os livros com abordagem diversificadas e positivas, suas atitudes e seu direcionamento da leitura podem acabar reforçando um imaginário estereotipado sobre o negro” (SOUSA, 2001, p. 213)

Referências:

JUNQUEIRA, Rogério. “Aqui não temos gays nem lésbicas”: estratégias discursivas de agentes públicos ante medidas de promoção do reconhecimento da diversidade sexual nas escolas. In: Bagoas: revista de estudos gays. v. 3. n. 4. Natal: EDUFRN, 2009. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v03n04bagoas04.pdf>. Acesso em 9 nov. 2010.

SOUSA, Andréia Lisboa. Personagens negros na literatura infanto-juveni: rompendo estereótipos. In: CAVALLEIRO, Eliane (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001.

3 comentários:

Pedro Ivo disse...

Parabéns pelo texto, concordo em quase 100% do que escreveu, só não acho que retirar o livro agora seja uma atitude política favorável aos movimentos sociais da causa ou à causa em si. Nós educadores já estamos acostumados a receber as merdas de cima pra baixo e lá no campo de batalha, na sala de aula, consertar o cocô execrado pelas "mentes pensantes" do MEC (alguém sabe quem são?). Mas é o que tem nos motivado a continuar: a batalha... Já estão os livros lá? Então, como você mencionou, somos nós (desde que capacitados para isso, e mais ainda, se dispostos a fazer isso) que vamos trabalhar todas as questões etnicorraciais, problematizar e construir conhecimento a respeito, o que não quer dizer que vamos dispensar a realidade, mas aportar as entrelinhas, os contextos e sub-contextos.

E friso o que você escreveu:

"E os novos escritores(as), onde estão? Por que Lobato é sempre escolhido como referência? Por que ele é “clássico”? Por que não incentivam e financiam a criação de outras obras proporcionando novas visões e lançando novos(as) escritores(as)? São essas perguntas que também devemos fazer!"

Sabe, Cleverson, sempre me perguntei isso... A Literatura estará para sempre relegada a viver da supervalorização do passado? Question.

Cleverson Domingos disse...

Oi Peter!
Olha só, estive lendo aqui em casa os Documentos Finais da Conferência Nacional de Educação Básica e da Conferência Nacional de Educação e em ambos os documentos, aprovados por conferências prévias e comitivas municipais, estaduais e distrital, reiteram a importância de criação de critérios para eliminar obras que veiculem discriminações ou retirá-las de circulação. Considerando que são documentos que representam os anseios de toda comunidade acadêmica, escolar, professores(as), gestores(as), entidades de classe, sociedade civil organizada, profissionais e familiares, que participaram de um processo democrático e coletivo, e definiram essas linhas de atuação, não vejo necessidade de crítica a tal postura agora, pois estariámos desconsiderando as lutas, as discussões e as conquistas de um movimento de todos(as) os(as) educadores(as) nacionais, especialmente, os(as) negros(as) que há muitos anos vem tentando colocar essa temática em pauta. Portanto, é uma tentativa de construção de uma nova educação. Como professores(as) e pesquisadores(as) precisamos talvez está mais atentos(as) para vê se essa estratégia surtirá algum efeito ou não. Não é momento de "censurar", seja o livro ou a estratégia política-pedagógica, é momento de "observar", "pesquisar" e "refletir" a respeito dos jogos de poder e discursos que insistem em reiteirar a visão eurocêntrica e divergionista, mas também a pedagogia do racismo.
Beijos,
Cleverson

EDUCAÇÃO GERAL disse...

Pois é, tudo está imbricado e e revelando suas incompletudes latente, continue a nos remeter a esse tipo de reflexão.
Zildaliz

Postar um comentário

Você gostou dessa postagem? Deixe aqui um comentário!