"Eu
cheguei no limite de travar na porta da escola e disparei a chorar, olha a
situação"
Notícia publicada na edição de 06/03/13 do Jornal Cruzeiro do Sul, na
página 020 do caderno A - o conteúdo da edição impressa na internet é
atualizado diariamente após as 12h.
Daniela
Jacinto
daniela.jacinto@jcruzeiro.com.br
daniela.jacinto@jcruzeiro.com.br
De repente o sonho de ser professor e compartilhar
conhecimento com estudantes aos poucos se desfaz. O processo de desilusão é
lento e gradual, porém a certeza de que já não dá mais para continuar é
percebido quando, logo na ida para o trabalho, o coração começa a disparar, a
sensação ruim aumenta e simplesmente esse professor, que outrora almejou tanto
estar naquele local, simplesmente não consegue entrar na escola. "Eu
cheguei no limite de travar na porta da escola e disparei a chorar, olha a
situação", conta, emocionado, um professor da rede estadual de ensino de
Sorocaba, que preferiu não se identificar para não ser prejudicado.
Esse professor conta que adorava lecionar, mas que
o sistema de progressão continuada o desgastou. "Quando o governo
implantou, nós professores nos sentimos meio acuados porque o fato de não poder
reprovar os alunos levou muitos estudantes à indisciplina. Tem alunos que vão à
escola sem caderno, então você se sente um fantoche, uma marionete, porque não
tem autonomia. A verdade é que na escola estadual você se sente um nada. Afinal
por que estou aplicando provas, dando trabalhos, se o aluno não vai se
empenhar? Estou fazendo isso à toa", desabafa o professor. Para ele, o que
aconteceu é que o profissional da área perdeu o respeito. "Como se não
bastasse tudo isso, para aplicar provas o professor tem ainda de tirar dinheiro
do bolso porque a escola não tira as cópias necessárias", relata.
Salário baixo, ausência de um plano de carreira e a
agressividade por parte de alunos indisciplinados são outros fatores que,
somados, causam um desgaste muito grande. "Tudo isso deixa a gente muito
pra baixo. Sou pós-graduado, tenho 25 anos de profissão, adoro o que faço e
acabei entrando em depressão. De sete anos para cá peguei aversão de
escola", lamenta, profundamente desapontado com o momento que está vivenciando.
Ele conta que por motivos de doença, passou a usar
todas as faltas a que tem direito. "Tirei as faltas abonadas e as faltas
médicas, já cheguei a ter quatro, cinco faltas por mês. Isso fazia com que eu
deixasse de ganhar bônus e também a escola, mas enfim. O sistema é responsável
por tudo o que estou passando".
Uma pesquisa divulgada pela Apeoesp em 2010 revela
que 48,5% dos professores do Estado de São Paulo sofrem com estresse e 26,6%
com depressão. Mais de 40% dos profissionais declarou que sente-se cansado,
sobrecarregado, emocionalmente exausto, muito cobrado pelas pessoas, frustrado,
com vontade de mudar de profissão e sem perspectiva de futuro, sintomas
atribuídos à Síndrome de Burnout. A pesquisa ainda mostra que 34,4% dos
professores declararam que precisaram se afastar ao menos uma vez da sala de
aula por razões de doença sendo que, dentre eles, 42,5% por males ligados
diretamente à ocupação.
Em Sorocaba, somente no ano passado, 2.067
professores da rede estadual foram afastados por motivos de doença e 189
professores readaptados, conforme informações da Secretaria de Gestão Pública
do Estado.
Pesquisador defende o abolicionismo escolar
Danilo Ferreira de Camargo, mestre em Educação pela
USP, analisa essa situação vivenciada por uma parcela significativa de
professores da rede pública de ensino em sua dissertação de mestrado, onde
discorre sobre o tema "O abolicionismo escolar: reflexões a partir do
adoecimento e da deserção dos professores".
Sob orientação do professor Julio Roberto Groppa
Aquino, Danilo teve acesso, ao longo de quatro anos, a mais de 60 trabalhos
acadêmicos que tinham como tema o adoecimento dos professores. Conforme ele, os
problemas da realidade escolar deveriam ser entendidos como resistência
política à ordem estatal e não apenas como patologias ou desvios morais dos
professores e alunos. Para Danilo, as pessoas deveriam aprender a questionar
não os problemas da escola, mas a própria existência dela como um grave
problema político.
Para ele, talvez esteja na hora de começar a
duvidar da naturalidade da escola e de sua correspondente ordem social. Em
entrevista para o Educare, Danilo explica mais sobre a questão:
O que faz o professor adoecer por conta do ambiente
escolar? Li em seu trabalho que seria uma forma de resistência. Poderia
explicar melhor isso?
No meu trabalho eu analiso o surgimento de uma
"epidemia" das doenças ocupacionais relacionadas à carreira docente,
assim como o aumento considerável da deserção docente nas escolas brasileiras.
A principal patologia seria a exaustão física e emocional, classificada pela
literatura médica como síndrome de Burnout. A minha hipótese inicial era a de
que os problemas da escola são respostas políticas ao problema da
"condução da conduta" dos agentes escolares e não meramente um
problema de "crise" da escola contemporânea e dos valores que ela
representa. Para tanto, tentei demonstrar que o problema do adoecimento docente
é a manifestação atual de um velho problema: o da insuportabilidade da rotina
escolar. Essa insuportabilidade, por sua vez, está diretamente ligada à
invariância da escola e a forma como ela confina os nossos corpos com o intuito
de produzir um sujeito autogovernado a partir dos comandos políticos do Estado.
Você fala que a insuportabilidade escolar se
estendeu ao corpo docente com uma força impressionante e que o silêncio é uma
forma de protesto também. Nesse caso faltar, adoecer, é uma forma de mostrar
que algo não vai bem. Mas afinal, o que é que não vai bem na escola? Por que
isso acontece?
Acredito que não devemos mais ficar procurando o
que está errado na escola. O que me parece curioso é que a escola é criticada
desde o seu surgimento e, no entanto, ela não para de se expandir. Hoje, mais
do que nunca, a escola está por todos os lados e já não conseguimos escapar de
sua clausura, de seus rituais, de seus valores. Minha pesquisa almejou
questionar o triunfo inabalável da estrutura escolar e sua expansão saturante
em nosso meio social. O objetivo principal foi escapar do grande paradoxo da
estrutura escolar: criticamos quase tudo o que se passa na escola (os alunos,
os professores, os conteúdos, os gestores, os políticos) e, ao mesmo tempo,
desejamos mais escolas, mais professores, mais alunos, mais conteúdos e
disciplinas. É preciso reconhecer, antes de qualquer coisa, que as mazelas da
escola são muito rentáveis e parecem se proliferar na mesma medida em que
proliferam os diagnósticos e os prognósticos para uma possível cura. Em geral,
todos os discursos sobre os problemas da escola retroalimentam-se dos próprios
diagnósticos que fazem circular com a indefectível legitimidade de suas
intervenções. A minha questão é outra: será possível não mais tentar resolver
os problemas da escola, mas compreender a existência da escola como um grave
problema político?
Em seu trabalho você fala sobre o abolicionismo
escolar e cita que em todas as suas pesquisas ninguém ousa questionar a
existência da escola, todos querem melhorá-la mas não querem que deixe de
existir como instituição. Por quê?
O filósofo francês Gilles Deleuze certa vez
declarou: "Se as crianças conseguissem que seus protestos ou simplesmente
suas questões fossem ouvidas numa escola maternal, isso seria o bastante para
explodir o conjunto do sistema de ensino". Essa constatação simples nos
assusta porque o que está em jogo é a forma como naturalizamos uma instituição
que se tornou o grande fundamento de nossa civilização. Dessa forma, questionar
a existência da escola é transgredir o limite do nosso enunciado político. Não
é por outra razão que todos os protagonistas presentes no jogo dos discursos
escolares (pesquisadores, professores, sindicalistas, jornalistas, juristas,
governo), não obstante aleguem um estado crônico de crise da escola, parecem falar,
pensar e agir motivados por um desejo comum: a hiper-potencialização das
práticas escolares. Tentei em meu trabalho analisar esse limite político do
nosso universo sociocultural. Isso porque acredito que a explicitação desses
limites, talvez, pode dizer mais sobre nós mesmos do que toda essa rede
discursiva que pretende diagnosticar medicamente, denunciar politicamente e
solucionar administrativamente o mal-estar da escola contemporânea.
Como seria uma sociedade sem escolas?
No meu trabalho, tentei chamar atenção para o fato
de que, do século XIX ao início do XXI, nenhuma reforma educacional, teorizada
ou praticada, modificou substancialmente a rotina do cotidiano escolar no que
tange ao sequestro dos corpos infantis e ao controle rigoroso do espaço e do
tempo a que estão submetidos todos aqueles que são escolarizados. Apesar das
aparentes modificações ao longo do tempo (da palmatória ao palmtop), a escola é
uma instituição que parece conservar sua essência já há muito naturalizada:
todos os dias, uma legião de crianças, dotadas de um número de matrícula, um
uniforme, um caderno de notas, são confinadas por algumas (ou muitas) horas no
interior de salas de aula, sob a supervisão de um professor, para que possam
ocupar o tempo e aprender alguma coisa. Essa é a realidade que temos, e ela nos
parece tão natural que não conseguimos sequer imaginar como seria um mundo sem
essa tecnologia de governo da infância. Ninguém pode dizer como seria um mundo
sem escolas, mas imagino que no futuro não conseguirão imaginar direito como
eram as sociedades com escolas.
Se não tivesse escolas hoje, onde ficariam as
crianças e adolescentes enquanto os pais trabalham?
Essa pergunta revela o verdadeiro papel da escola:
um depósito de crianças e adolescentes para garantir a força produtiva do
Estado. A pergunta, então, deveria ser: por que não paramos de reproduzir as
idílicas utopias escolares? Por que não encaramos as escolas como de fato são:
carceragens deprimentes para onde enviamos todos os dias uma multidão de crianças?
No que se refere aos impasses da escola no mundo atual, acredito que o mais
importante é escaparmos da denúncia moral sobre os benefícios ou aspectos
nocivos da estrutura escolar e encará-la como ela realmente atua. No mais,
gostaria de dizer que talvez não possamos mais, por muito tempo, escaparmos de
um fato concreto: a escola é insuportável e o preço desse insuportável social
tem sido a violência que, ora aqui, ora ali, irrompe das piores formas. E antes
que você me pergunte qual a solução, eu só teria a dizer que devemos começar a
duvidar das soluções escolares que são vendidas todos os dias com as mais
diversas intenções e pelos preços mais variados.
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