Minha experiência como recenseador do IBGE em Ceilândia-DF

23 de agosto de 2010


Há algum tempo, venho postando no meu Twitter (@kclever_) notícias e experiências como recenseador do IBGE. Não poderia deixar de elaborar um texto para guardar e compartilhar as memórias dessa experiência riquíssima, por sinal. São tantas situações que se observam em campo, que nem sei se darei conta de registrar todas, mas falarei das mais marcantes.

De modo cronológico, lembro-me das minhas primeiras entrevistas. Minha mão tremia mais do que o “normal”. O PDA, nome dado ao Smartphone, faltava cair no chão de tão nervoso que eu estava. Logo nas primeiras casas, uma descoberta: uma casa usada como “local” de prostituição. Até hoje não consegui falar com a inquilina, parece que ela só atende com hora marcada e códigos secretos que não consegui decifrar.
Eu fiquei responsável pelo setor que corresponde a QNM 02, conjuntos A, B e C, Ceilândia Norte-DF. Já rodei tudo, mas ainda faltam 84 casas fechadas, as quais precisam ser pesquisadas até o final dessa semana.  Nessas visitas e entrevistas percebi “coisas” não apenas da realidade desses(as) moradores(as), mas da minha realidade.
É unanime o desconhecimento sobre as razões do Censo Demográfico. A pergunta sempre (re)feita é “mas pra que isso?”. Essa pergunta é feita sempre, tanto no começo do questionário, na hora que você tem que convencer a pessoa a lhe responder, quanto em questões específicas, por exemplo, sobre renda e cor/raça.
Muitos moradores(as) mentem suas características e condições de vida. Trocam renda, idade, cor/raça, etc. O motivo dessa troca é a preocupação constante de que o Governo pode “descobrir” aquela pessoa, como critério de classificação em torno da receita federal, possível terra (lote) que está esperando ganhar do governo, etc. Também há quem troque informações por pura inquietação ou displicência com o Censo ou o(a) recenseador(a). Outros(as) também mentem por causa do preconceito, de ser “visto” como inferior, sem prestigio, sem “normalidade”.
A questão da cor/raça, muitos(as) me respondiam: “mas eu não sou racista!” Eu dizia: “Eu sei senhor(a), mas a questão não é essa! O IBGE quer saber como é a composição étnica e racial do Brasil”. É interessante também refletir sobre essa questão mais aprofundadamente. Como afirma Silva (2000, p. 83), “[...] numa sociedade em que impera a supremacia branca, por exemplo, “ser branco” não é considerado uma identidade étnica ou racial [...]”. A cor branca não é uma etnia/raça. Etnia/raça é: parda, preta, amarela e indígena. A “identidade branca”, por outro lado, é vista como a identidade “normal” e “desejável”. Não é estranho, portanto, muitos(as) pretos(as) e pardos(as) dizerem que são “brancos”, como percebi. Dizer que é “branco”, nesses casos, é como se fosse dizer “eu sou normal” e evitar, portanto, o preconceito.  Teve um caso de um rapaz branco que disse que era preto, como forma de resistência as perguntas feitas. Tive que marcar que ele era preto, conforme orientações do IBGE, e fiquei pensando: “é bom que equilibra!”. Esse mesmo rapaz mentiu seu rendimento mensal.
Poucos(as) moradores lhe acolhem, mas muitos(as) lhe rejeitam como recenseador. Quantas vezes escutei “você deseja um copo com água?”? – Poucas, poucas mesmo, umas duas vezes de 172 casas/moradores que já entrevistei. Quantos disseram “eu não vou responder isso”, “volta outra hora”, “eu não vou te atender”, “eu não sou obrigado a dá informação alguma para seu IBGE”? – Vários, muitas vezes, frequentemente. No entanto, as situações acolhedoras ficam marcadas, por serem poucas. Há quem tem empatia com o trabalho do(a) recenseador(a). Há quem conte toda sua vida, suas condições, sua rotina. Há quem vira amigos(as): os(as) recenseadores(as) passam na rua, veem você e cumprimentam de longe com um jeito de amizade.

Outra situação interessante que observei é que sempre peço a algum(a) morador(a) para avisar os(as) demais que sou eu quem está recenseando a área e eles(as) dizem: “mas quase não vejo meu vizinho”, “esses vizinhos daqui são estranhos”, “ninguém aqui se fala”. Percebi com isso, o quão as pessoas não se interagem, mesmo morando ao lado. Isolam-se. Fecham-se. Vivem em seus próprios “mundos”. O quanto não importamos também com o “outro”. E o quanto o “outro” só é importante quando “importa” para nós.
A realidade dos postos de coleta aqui da Ceilândia-DF também é importante comentar. No início do Censo, em 5 de agosto de 2010, não existiam coletes (uniforme) para todas as numerações/tamanhos. Existiam poucos questionários de amostra e básicos para serem respondidos pela internet, caso o(a) morador(a) deseje. Não existiam Folha de Recados para deixar no domicílio, caso o(a) morador(a) não se encontre. Tirado o uniforme, as demais carências foram sanadas depois da primeira semana.
A última, que eu nem esperava acontecer mais, foi a satisfação de encontrar um casal homoafetivo. Fiquei feliz em saber, sem muitos receios ou vergonha, da boca de um rapaz que ele morava com o namorado e que no bloco dele há mais homossexuais que são casados consensualmente.
Isso é um pouco da realidade que vivenciei e estou vivenciando como recenseador do IBGE aqui em Ceilândia-DF. Eu sabia que essa experiência ia ser boa, que eu cresceria mais com ela. Quem sabe se essa semana que iniciou não traga mais novidades! Se souber, contarei aqui para vocês.

Referência: SILVA, Tomaz Tadeu et al. A construção social da identidade e da diferença. In: ______. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

3 comentários:

CHIRLEI disse...

ME IDENTIFIQUEI MUITO COM SUAS PALAVRAS, PARECIA QUE ERA EU ESCREVENDO.PARABÉNS PELO BLOG. TRABALHAR NO CENSO TEM SEU LADO BOM E RUIM ,MAS É COM CERTEZA UMA EXPERIENCIA MUITO ENRIQUECEDORA.

Unknown disse...

Oii, você tem uma base de quanto vale uma casa recenseada (uma produção)?

Cleverson Domingos disse...

Não. Não tenho.

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