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Fotos: Arquivo NE10 |
Juninho aprende a ser homem, macho, como se espera, é o que tem que ser
Por Miguel Rios
Juninho nasceu. Dia de festa na família, de
orgulho. O filho varão. Quarto azul, roupinhas azuis. Azul é o ursinho. Azul é
o chocalho. Trata-se de um menino, homem, e tem logo que ser identificado com
tal. Não deixar dúvidas.
Juninho é carregado pelos tios e logo seu pênis, mesmo diminuto, é louvado.
"Pintão!". "Esse puxo ao tio!" As tias se apressam em
arranjar um par para quem tem um dia de vida. "Agora a filha de Maria e
João tem com quem namorar", diz uma. "Tem também a de Pedro e
Juliana", lembra outra. Chegam logo a um consenso que ele dará conta de
todas.
É garanhão. É homem. Surge a conclusão que ele estava virado para o lado
direito, pois, nessa posição, poderia ficar de olho na menininha ao lado no
berçário. Conversa vai conversa vem, alguém lança a teoria que quando ele chora
as garotinhas se calam para escutar o grito másculo do conquistador.
Juninho é homem e como homem será criado. É uma família que nutre a
testosterona, a macheza, com muito cuidado. Não podem fraquejar, por tudo a
perder.
O menino cresce e é teleguiado na ordem. Bola e carrinho. Falcon e Comandos em
Ação. Um dia Juninho tocou em uma Barbie. De imediato foi repreendido.
"Não é para menino". Ele beijou um amiguinho na bochecha. Recebeu uma
bronca maior. Roubou um beijo na boca da coleguinha. Quanta alegria dos pais,
que fingiram desaprovar diante dos familiares da garota, mas comemoraram em
casa o avanço do amado homenzinho. "Esse não nega. Vai pegar todas.
Hehehehe!" Como o pai está feliz.
É gradual. Juninho aprende a ser homem, macho, como
se espera, é o que tem que ser. O tio o abraça e pergunta: "Quantas
namoradas já tem na escola?" Juninho responde: "Sete". O abraço
fica ainda mais apertado. Respondeu assim... na obrigação, no escapa. De tanto
ser questionado e ficar perdido sem saber o que falar, contou as amigas de
classe e jogou o número na inocência. Foi premiado, viu que agradou. Tempos
depois aumentou para oito. Mas comemorado ainda. Juninho fixou que quanto mais
aumenta a soma, mais homenageado é.
Aprendeu. Homem tem que pegar muitas, tem que contar que pega muitas e aí causa
contentamento. Mulher é feita para ser apanhada. Juninho já sabe que isso
"é coisa de homem", que "homem é assim mesmo", "que
quem quiser que prenda suas cabritas que o meu bodinho está solto".
Juninho fixou.
Chegou na adolescência e tem consciência de que o
mundo é machista, desde o começo é desse jeito, fim de papo. Ele dos que saem e
paqueram. Dos que se ligam em uma garota e vão para cima. Dos que acham que a
fêmea tem que ceder, que sua cantada é imbatível, que insistir é fundamental.
Juninho aprendeu com os parças que a mulher vai ali para ser incomodada, que
ela faz doce, mas ela está querendo, que não tem que abrir para o beicinho
dela, que macho que é macho não desiste. Ele já beijou forçando, puxou cabelo,
levou tapa na cara e bateu de volta.
Juninho modelou a mente para identificar a menina para ficar e a para namorar.
Normas que ele segue à risca, porque homem que é homem de respeito não se liga à
vagabunda, não quer ouvir "tás com uma rodada?". Para namorar é a
menina com menos fama de ficante possível. A comportada. A virginal. Para dar
uns pegas é a liberta, a sem amarras, que ele conhece como piranha. A que não
vai rejeitá-lo. A que taxaram como sempre disponível. Que é ir lá e pimba!, já
pegou. Que se recusar ele tem o direito de reclamar: "Como assim ele ser
recusado?", "Como assim aquela puta posar de difícil?". Juninho
não entende. Não admite. Não foi o que lhe disseram desde sempre, está fora do
eixo.
Não é o que lhe cobram. Juninho sabe que precisa corresponder. Caso algum
requisito do macho ideal falte em sua ficha, ele tem que pagar. Preço, para
ele, duro.
Se Juninho tropeçar diante da banca examinadora, que nunca para de fiscalizar,
é chamado de gay. Instantâneo. Se fraqueja na caça sexual, é veado. Se usa um
sapato fora das regras, é boiola. Se pede um chá na cantina da escola, é bicha.
Inadmissível para ele. Juninho foi doutrinado para pensar que, mas que tudo,
homossexualidade é o que há de pior. Que seus tios e tias, primos e primas,
avôs e avós, mãe e pai, sempre o guiaram no cabresto, com tanta pressão, tanta
vigilância, tanto esforço, para evitar a desgraça. Que ele pode ser tudo.
Machista, tarado, bandido, dar desfalque, trair um amigo, ser violento, mandar
pessoas para o hospital. Tudo. Menos a desonra de ser gay.
Juninho treme apenas em pensar na possibilidade de que alguém bote sua macheza
em dúvida. Nunca. Logo ele que para desmerecer chama logo de veadinho. Logo ele
que vai para o estádio torcer e grita sem parar "Fulano, veado",
"Time de mariquinhas". Que nem cogita ter um jogador homossexual
manchando as cores de seu manto sagrado. Que caso ocorra vai ameaçar o
cara,manda sair, já em pânico pela chacota que o adversário vai fazer pelo
resto da vida.
Logo Juninho que não lava um prato, nem arruma a cama por ser trabalho de
mulher. Logo ele que abusa dos gesto viris. Que abraça amigo quase na porrada
para que o afeto não seja confundido com delicadeza. Que grita palavrão quando
uma garota de minissaia passa, que coleciona Playboys, que de jeito nenhum
chora porque nada a ver ser sensível, que transa mesmo sem estar a fim apenas
para manter a reputação intacta.
Que acha que o mundo corre perigo de enveadar por causa dos direitos LGBTs. Que
ficou sabendo que ativista homossexual é gayzista, que ser homofóbico é apenas
bater em gays, que destratar, querer que continuem subcidadãos, subalternos, é
defender o orgulho hétero, as famílias, a ordem natural. Que acha o mundo é
hipócrita, já que ninguém quer ter filho gay, mas ficam defendendo.
Juninho é algoz e vítima. O mundo, que ele tanto acredita ser imutável, que
como está deveria ficar, solidificou aos poucos, desde quando bateu suas
primeiras palminhas, o que ele prega.
O mundo de Juninho é o de verdades velhas, fabricadas por interesse, de seus
antepassados, que ele absorveu como suas. De que há pessoas subordinadas, que o
lugar delas é aquele, que não têm nada que contestar. Elas têm é que se
contentar.
Juninho é um rei. Está no lucro. Posto no topo da cadeia alimentar, em um
ecossistema onde outros são presas. Para capturar, acasalar, procriar ou para
destruir. Ele luta para perpetuar seu lugar dominante.
Juninho não atenta, em seu silêncio crítico e criativo, o quanto ele nada tem
de atitude. De ele mesmo. É um papagaio, uma cópia. Um escravo, que asfixiou
uma parte de si para dar satisfação, se moldar ao que se quer dele. É passivo.
Mas Juninho está nem aí, nem vai chegando. Raciocínios novos são frescuras de
veado. Ficar lamentando injustiça é mimimi de veado. Homem bebe, arrota e dá no
couro. E fica tudo bem.
Juninho tem mais é que se preocupar com o casamento que se aproxima. Com menina
que ele desvirginou e engravidou. Não está muito na de juntar as escovas de
dente, já caiu na greia dos companheiros, de que vai para a forca, que perder a
liberdade, mas ele se compromete a não deixar a farra e a pegação. "Mulher
em casa nada impede mulher na rua". E arranca gargalhadas. Se não der
certo, separa e volta por completo para a curtição.
O importante é que Netinho nasce daqui a seis meses. Enxoval azul já
encomendado. Max Steel e Hot Wheels na prateleira. Netinho vai puxar ao pai.
Macho todo.
*As colunas assinadas não refletem,
necessariamente, a opinião do NE10